quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

os incorruptíveis contra o cinema (2)

O senhor é acusado de ter assassinado a sua esposa, a sua filha, e uma amiga desta. Como se não bastasse, tratou de lhes cortar as cabeças, os seios,  os pés e de ter enviado estas matérias como doações para um lar de orfãos. Que tem a dizer em sua defesa?

Senhor Doutor Juíz, senhores jurados, senhor Procurador, meus senhores e minhas senhoras: sou absolutamente inocente!

(multidão em exclamações de espanto, burburinhos entre os jurados, Camilo Lourenço a defecar e a alimentar Margarida Rebelo Pinto)

Como??!! Há provas irrefutáveis do seu envolvimento nestes crimes hediondos!

E no entanto, senhor juiz, absolvo-me de todas as acusações. Estou tão seguro da minha ausência de pecados morais e éticos que até dispensei o meu advogado, senhor juiz. Estou certo da minha conduta irrepreensível perante factos e pessoas corruptas que orbitam nas esferas do Cinema. Pessoas milionárias, nojentas, oriundas de empresas corruptas e eticamente reprováveis, empresas que patrocinam filmes para coqueluches festivaleiras, empresas que obrigam meninos de seis anos a fazerem bolas de futebol em grutas sem oxigénio a 600 metros abaixo do solo! E são estas empresas que dão guarida a estas produções repugnantes para agradar a uma burguesia corrupta e decadente! Um mecenato tão feio e mau que quase me faz chorar, senhor juiz, senhores jurados, meus senhores e minhas senhoras! Empresas criminosas que continuam a legitimar este cinema publicitário, recheado de travellings de Kapo que fariam o original travelling de Kapo parecer um primor de autenticidade e honestidade intelectual! Não pactuo com isto, meus senhores! Cinema é pessoas de carne e osso, meia dúzia de tostões, uma câmara a cair de podre, pão e vinho! Nada de milionários e milionárias, carnes e mentes pecadoras!

(prefiro o Kechiche, murmura-se na multidão)

Quem proferiu tal vilania? Desconfio que terá poucos sucessos e aventuras na sua vida, se continuar com essa atitude burguesa e nojenta! Pois o Cinema é...

(oito horas depois)

...Uma dimensão moral que vem dos mestres gregos, a léguas destes tempos de relativismo moral que alastra à própria definição do que é BELO!

Sim, sim, vamos todos a acordar! Senhores jurados, chegaram a um veredicto?

Sim, senhor Juiz

É favor o senhor arguido levantar-se. O Senhor é considerado...culpado. Está condenado à pena de morte. Passar bem.

...E nada dessas carroças culturais à irmãos Dardenne! Cinema hipócrita que jamais abalará os alicerces da civilização burguesa! Cinema é dos pobres! Cinema é resistência! Cinema...